Após assistir ao filme “O Poço”, fiquei com uma
curiosidade: conhecer o livro de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. E aí
começou uma nova aventura para mim também. Primeiro, preciso pontuar umas questões técnicas para facilitar a vida de quem quiser descobrir a joranada desse herói. O livro é domínio público e acabei baixando uma versão com uma tradução bem clássica e isso dificultou a leitura
pois meu português não acompanhou. Então, encontrei uma versão com uma tradução
de 2001 e tudo fluiu melhor (os dois volumes possuem traduções modernas). Por ainda não ter terminado a leitura, também usei
um documentário do History Channel sobre a vida de Cervantes, assisti ao Dom
Quixote de 2000 (porém não achei muito fidedigno ao que li até o momento) e à algumas
cenas avulsas que encontrei de O Homem de La Mancha, de 1972. Esse sim, mais
fidedigno ao conteúdo do livro. Também recomendo os canais de filosofia do Café
Filosófico e da Nova Acrópole para ampliar a visão e a interpretação da
realidade.
Sobre a vida de Cervantes. Ele nasceu em 1547, após
um incidente num duelo (que já eram proibidos na época) fugiu para Roma, foi
militar, machucou a mão esquerda numa guerra naval na Itália contra os turcos,
voltou para a Espanha, foi sequestrado na volta, foi um tipo de cobrador de
impostos, foi excomungado (dizem que tentou cobrar impostos de uma igreja), foi
acusado de roubo e preso. Uma vida bem agitada para a época. Quando preso, começou a escrever o livro que seria um
dos mais publicados nos próximos séculos, perdendo apenas para a Bíblia. Só
aí já vejo o quão medíocre sou enquanto homem moderno, que numa época de mais
recursos, preso em casa por uma quarentena e sem nenhum ferimento, preciso fazer um esforço e muitas
pesquisas para conseguir escrever um texto, enquanto a genialidade e a experiência de Cervantes, que afloraram num momento de recolhimento, trouxeram
uma grande obra literária para o mundo. Em suma, ainda tenho um longo caminho
para ser percorrido, não como escritor ou pelo reconhecimento, mas pela
capacidade de após um período de reclusão, onde olho para dentro e entro em
contato comigo, manifestar no mundo algo positivo da minha maneira.
Mas vamos para história com os pontos que me
chamaram a atenção. Alonso Quijano é um velho fidalgo que enlouquece ao ler
muitos livros fantasiosos de cavalaria. Então, resgata a armadura antiga de seu
bisavô e transforma-se em Dom Quixote de La Mancha e decide sair para uma jornada
para mudar o mundo que não o agrada, que ele não quer e não pode compreender.
Nesse caminho, encontra seu escudeiro Sancho Pança, prometendo-o que teria uma
ilha.
Uma observação que cabe aqui, é que estamos
diante de uma fórmula, talvez pela primeira vez, de uma dupla complementar. Se
um é prático, o outro é culto. Se um é cuidadoso, o outro é desajeitado. Se um
é racional, o outro é sonhador. Se um é inquieto, o outro é pensativo. E essa fórmula
repetiu-se muitas vezes no cinema e na literatura: Sam e Frodo, o gordo e o
magro, R2D2 e C3PO, Asterix e Obelix, Holmes e Watson, entre muitos outros. A capacidade
de um ser humano perceber as diferenças de outro, e encontrar num respeito
mútuo a construção de uma amizade em meio a discussões e reconciliações pode
ser refletida nesses modelos. No modelo de Dom Quixote, temos um idealista, preocupado
com as questões morais, e um lavrador, preocupado com as questões da vida prática.
Sobre Sancho Pança, interessante notar duas
coisas. A primeira, é que no início ele tenta puxar Quixote para a realidade, não por um vínculo de interesse e sim pela amizade. Ele acaba se afeiçoando ao cavaleiro louco como ele é, e no deocorrer do livro, passa a agir para manter vivo o ideal de
nobreza que Quixote tinha. Leio como se a vida prática e terrestre devesse
servir como um apoio para que alcancemos nossos ideais não materiais. O segundo aspecto, é que em determinado momento, ele consegue a sua ilha. Nesse
momento, Quixote dá a ele alguns conselhos para governar a ilha:
“Põe os olhos em quem és, procurando conhecer-te
a ti mesmo, que é o conhecimento mais difícil que se pode imaginar. De conhecer-te
resultará o não inchares como a rã, que quis se igualar ao boi.”
Sancho Pança torna-se um governador sábio e
muito justo. Mesmo com seu jeito simples de pensar e agir, ele é muito bem
sucedido nessa função, apesar de no começo ser desacreditado pela população. Isso já acontece no volume dois do livro. A simplicidade do lavrador, não
o poder, é vista como o caminho para a justiça. Quando chegou a hora de partir,
os habitantes pediram para que ele ficasse mais tempo na ilha. Mas ele partiu,
pois no fundo, abdicou de um poder que nunca exerceu e por não exercer, foi
mais justo que os poderosos.
Voltando ao Quixote, ele é descrito como “alto,
seco de carnes e enxuto de rosto” além de ter uns 50 anos. Já começa que temos
alguém que não era (e não é) o padrão do mundo dual de herói. Antes de sair
pelo mundo para lutar, Quixote precisava de uma dama, alguém por quem lutar. Nos mitos, as princesas e as mulheres normalmente estão relacionadas à
representação da alma humana. Nos contos clássicos, a princesa precisa ser
resgatada do alto da torre, ou seja, nossa alma precisa ser resgatada pois ela
nos eleva e para isso precisamos passar por várias provas e aventuras. O amor
entre a dama e o cavaleiro medieval era muito mais cortês e não um amor carnal.
Na obra, também temos o seguinte trecho:
“Tudo preparado para a partida, percebeu que
faltava uma nobre dama para apaixonar-se. Um cavaleiro andante sem amores era
como uma árvore sem frutos, um corpo sem alma.”
Curiosamente, dentro dessa representação, ele
escolhe Dulcineia, uma moça descrita como feia e com mal cheiro pois era
criadora de porcos. Os tempos de Dom Quixote eram difíceis, e é interessante
como ele não vê sua alma longe ou precisando ser resgatada, mas ele enxerga sua
alma na dureza da vida.
Na obra, o trágico e o cômico estão lado a
lado. A obra foi aceita por seu caráter cômico, porém, considerando o momento
da vida de Cervantes, existe um caráter autobiográfico e trágico de alguém que
pode estar desiludido com a vida (aliás, os personagens no livro leem o próprio
livro). Com o romantismo no século XIV, o louco foi considerado herói. Para alguns,
ele ainda representa a ingenuidade, pois os objetivos de Quixote são nobres e
incluem retomar a Era de Ouro, Dom Quixote também procura pelo Rei Arthur pois
queria junta-se à Távola Redonda, entretanto, De La Mancha não era Camelot. O
que torna Quixote “engraçado” é que é capaz de ser tão humano e generoso, que
acredita no comprometimento das palavras, e chega ao extremo à inocência. Para
mim, filosoficamente, temos nessa obra alguns aspectos universais da vida humana.
O primeiro é a incapacidade humana de aceitar o
mundo como ele é, e assim rechaçar o mundo, estar insatisfeito e lutar contra ele. Nesse
processo, entra uma vontade de resgatar o passado que é considerado ideal. Quixote queria restaurar a Era de Ouro,
da verdadeira nobreza da cavalaria. Essa condição pode refletir o conceito platônico de que viemos de uma fonte perfeita, de um mundo ideal e para lá
que queremos retornar. Nesse processo, acabamos numa guerra por não entender
que o mundo é como ele é e não como queremos que seja. É como se não
aproveitássemos a jornada para nos conhecermos e voltarmos para a fonte ainda
mais ricos por nos prendermos nas riquezas desse mundo imperfeito. Por exemplo,
caso lhe oferecessem um diploma de um curso superior ou passar numa prova sem nenhum
estudo ou preparação, você aceitaria? Em princípio, parece não haver nenhum
problema, mas isso demonstra que apesar do desejo inconsciente de voltar à fonte, ainda temos os desejos desse mundo
aflorados. Amamos o resultado (o diploma) e não a jornada (o conhecimento em
si).
Ainda sobre a insatisfação, posso refletir sobre querermos que o mundo mude, mas ao
contrário de Quixote, não vivenciamos essa mudança. Quixote realmente vive seus ideais e não apenas os propaga, e por isso, é considerado louco. Para ele,
mudar o mundo era questão de justiça e não de utopia.
Segundo ponto, é que por ser idealista, ele busca a nobreza, mas o mundo
não tem isso para oferecer e acaba fazendo piada com ele, tachando Quixote de
louco ou aproveitando-se dele. Exemplifico com uma parte do livro que achei bastante
engraçada, com um humor bem atual. Quixote quer consagrar-se cavaleiro, mas
como é louco, entra em uma estalagem muito simples, em princípio todos ficam incrédulos
mas tratando-se de um fidalgo rico, acharam melhor fazer o que ele pedia, pois poderiam aproveitar a situação e fazê-lo pagar. Em um altar improvisado, auxiliado por um garoto
que segurava um toco de vela aceso e por duas mulheres, o dono iniciou um
palavrório ininteligível, puxando nomes de quem devia dinheiro, como se estivesse
fazendo uma oração devota e termina com algo como “Deus o faça um cavaleiro
bem-sucedido em todas essas questões aí” (tipo um “vai lá campeão”). Isso se
relaciona a parte histórica, de uma Espanha decaindo, onde a nobreza de valores
estava no passado.
Não poderia deixar de falar sobre uma das passagens mais famosas da
história, que é a luta de Quixote com os moinhos de vento, os quais Quixote via
como gigantes de quatro braços. Ao não conseguir matar os gigantes e perceber
que eram moinhos, Quixote diz para Sancho Pança que os encantadores transformaram os gigantes em
moinhos para acabar com a sua glória. Aí pegou pesado para mim. Pois a reflexão
aqui é quem são os meus encantadores? O que faz o virtuoso parecer patético? E o
que me encanta para tentar me encaixar em um mundo imperfeito e me desvia das virtudes? Obviamente, essas respostas são muito pessoais para serem registradas por escrito mas me fez ver
quais ilusões desse mundo temporário me fazem perder o foco do que é real pelo
critério da eternidade.
Achei curiosa uma visão de um pesquisador que deu um depoimento no documentário
do History Channel. Ele diz que os moinhos representavam a industrialização da
época, representavam o futuro mas Quixote queria restaurar os valores do
passado, por isso via os moinhos como monstros gigantes. Achei interessante
para fins didáticos.
Outro ponto interessante (SPOILER) é que Dom Quixote retoma a lucidez
antes de morrer. Para mim, isso é muito significativo. É como se ele fizesse as
pazes com esse mundo, e por isso, não morreu verdadeiramente. Pois, ao retomar
a lucidez, ele se vê como Alonso Quijano, um velho fidalgo. E é esse sim que
morre. Dom Quixote, assim como nosso idealismo, sempre continua vivo. A morte
também pode não ser uma derrota, mas uma superação da dualidade através da lucidez
sem matar os ideais.
Quase no fim desse texo, chama atenção também que uma comédia pode ser
tão significativa. Normalmente, não levamos a comédia a sério, só achamos que
as tragédias tem profundidade. Como se considerássemos que se algo não doer, não foi forte ou impactante o suficiente.
Hoje em dia, as comédias estão muito ligadas a rir da ridicularização dos
outros, mas existem as comédias que fazem as pessoas rir por gerarem identificações
com aspectos da nossa própria personalidade. E também rimos de atos bons,
verdadeiramente altruístas (não a troca ou a tentativa de comprar os valores de
alguém ou promoção pessoal), por serem considerados ridículos.
Logicamente, essa história tem milhares de interpretações e também vi
outros aspectos que não abordei aqui mas que usarei como exemplo em outros
temas. Espero que a minha visão tenha contribuído de alguma forma. E para
terminar, deixo o trecho do livro que para mim, reforça a ideia de superação da
realidade.
“A liberdade, Sancho, é um dos
mais preciosos dons que os homens receberam dos céus. Com ela não podem
igualar-se os tesouros que a terra encerra nem que o mar cobre; pela liberdade,
assim como pela honra, se pode e deve aventurar a vida, e, pelo contrário, o
cativeiro é o maior mal que pode vir aos homens.”
Fiquem em paz =)